domingo, 28 de novembro de 2010

Carta perdida

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Num canto da calçada da R. Hoffmann, sombreada por uma parede velha de retintos descascados, havia uma folha de papel dobrada. Poderia ser mais um papel jogado e esquecido, derretido por chuvas ou varrido pelos garis da cidade, não fosse minha curiosidade, dizem uns feminina. Talvez porque aquela folha estava assim limpinha, dobrada não a esmo, parecia pedinchar por atenção. Vi nas dobras até um beicinho pidão, do tipo "me tira desse descaso".
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Olhei à minha volta, um tanto constrangida por declarar publicamente minha curiosidade pelo suposto lixo desprezado. Não havia ninguém na rua, peguei então a folha. "Rápido!" Caminhei naturalmente, mas fui desdobrando o papel imediatamente, em descompasso com meus passos, agora mais lentos. A letra era linda, ao estilo daqueles comerciais de banco "preenchendo cheque com caneta tinteiro". Por que alguém embeleza assim um papel que seria jogado? Seria um relato desistido de destinatário, esmerado a princípio e, por força de renúncia, abandonado ali no chão? Ainda assim, parecia esperançado de que alguém que jamais seria visto e encontrado pudesse ler seus pensamentos que ali eram divididos com um interlocutor coletivo. Afinal, o papel não estava amassado (daquele amassado proibitivo, cheirando a keep out). Seria, quem sabe, uma carta aberta ao mundo, deixada à sorte e à mercê do tempo, de um talvez, de transeuntes curiosos, da mira certeira de algum cãozinho de pata traseira levantada... ou talvez seria parte de um diário, cuja folha faltante estava justamente ali, como página aberta a um qualquer alterleitor.
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A escritora (sim, é uma escritora, sempre sei quando é) parecia desesperada, tentando um contato com alguém que sequer sabia quem era, falando inutilmente à twitter. Li seu texto, um relato lamurioso e dolorido. Não havia assinatura nem qualquer referência. Por isso não pude sequer dizer que a ouvi e compreendi e que fui tocada por sua história. Ainda que tal texto não tenha sido destinado a mim, a cada linha percorrida eu me identificava mais com a escritora... seríamos todos partilhantes de mesmas dores e sonhos malogrados? Um outro alguém que teria lido esse texto sentiria o mesmo que nós?
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Estaquei no meio do caminho. Não me senti no direito de manter comigo aquela folha. Voltei, então, à Hoffmann e deixei o papel dobrado no mesmo lugar, para um próximo leitor... quem sabe o real destinatário mora por ali mesmo? Não sei, é o que digo, mas sei que se há grandes mensagens que revelam o eu mais profundo, podem ter ido para a lata do lixo ainda nesta manhã de domingo.
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