terça-feira, 23 de março de 2010

Pesadelo

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Sim, tive um! Sonhei que abria um envelope e desdobrava um papel, no qual estava escrito:
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OBJETO DE ESTUDO DA LINGUÍSTICA
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Eu não sabia muito bem o que fazer com aquilo, pois uma frase assim, solta, sem verbo, sem imperativo, sem direção nem pista funde a cabeça duma pessoa. Mesmo em sonho. Comecei a caminhar com aquele papel ainda desdobrado, esvoaçando pra frente e pra trás na minha mão pendente e hesitante. Caminhava tentando encontrar algo à minha volta que correspondesse a esse tal objeto. Afinal, se ele tem correspondente no mundo, eu poderia encontrá-lo em algum momento. O problema é que eu não sabia para que lado ir. Estava anoitecendo, e uma neblina fria e densa como caixa de algodão se formava à minha volta, impedindo a visão. Eu praticamente não enxergava nada diante dos meus olhos. Tentei manter a calma e imaginei que se encontrasse uma placa que me indicasse um caminho, tudo seria mais fácil. Se ao menos houvesse um caminho...
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Tateando nesse nada gotejante, bati a cabeça num poste. Olhei para cima. No alto do poste havia uma placa com uma seta indicativa, na qual estava escrito:
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OBJETO DE ESTUDO DA LINGUÍSTICA
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Parecia piada. Fácil demais. Ali na minha frente, quem diria? Olhei para todos os lados mas não percebia nada. Pois é! Nenhum objeto, nenhum ser, nada nem qualquer coisa, ente ou fenômeno que me indicasse que ali estava o tal objeto. Ainda assim, dei um primeiro passo após a placa. Notei, então, que a neblina se adensava bastante. Recuei. A neblina se dissipou um pouquinho, mas se eu ultrapassasse a placa novamente, a neblina voltava a se adensar, anuviava-se! Voltei a olhar para a placa. Sim, a indicação era de que o objeto estava ali, à minha frente, mas será que estava realmente diante de mim? Meu objeto era uma nuvem no meio da neblina? Um algo-quem indefinido e pouco determinado, do qual não se percebe claramente o começo e o fim, um todo heteróclito (hehe) e multiforme? Complicado. Se ao menos houvesse um mapa...
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Ouvi uns risos abafados. Alguns homens se aproximavam, saindo da nuvem-neblina. Pedi informações sobre o objeto, e eles disseram, apontando para a nuvem:
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"VEJA! NOSSO INTUITO PRINCIPAL FOI FORMAR UM TODO ORGÂNICO!"
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Foram embora sem olhar para trás, mas deixaram cair uma grande folha laranja dobrada. Era um mapa. Percebi, na verdade, que o mapa era de uma localidade conhecida, mas era fruto de uma colagem de partes de mapas de diferentes escalas, formando um verdadeiro chopê-colê, uma espécie de carta geográfica-Frankenstein, e que cada parte correspondia a tipos diferentes de mapa. Assim, rotas rodoviárias acabavam virando rios, por exemplo. Bem, ainda assim era melhor do que nada. Entrei, corajosamente (ui!), na nuvem-neblina, a fim de entender meu objeto. Senti um frio na barriga, uma inquietação, mas segui em frente. Se ao menos soubesse pra que lado ficava a frente...
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Durante minha caminhada em busca do objeto, um grupo de pessoas foi aparecendo em meio à nuvem-neblina à medida que eu caminhava. Vi, então, que discutiam acaloradamente, em volta de um mapa aberto no chão. Era o mapa laranja. Percebi também que cada um tinha, além desse mapa, uma folha dobrada debaixo do braço. E que também parecia ser um mapa, só que um pouco diferente do primeiro em questão. Seria um mapa do mapa? Uma edição crítica do mapa? Sua própria interpretação do mapa? Fiquei curiosa (e confusa!), mas como não conhecia aquela gente, não me aproximei muito. No entanto, procurei ouvir um pouco da discussão, para o caso de obter alguma informação importante que me trouxesse uma luz diretiva. Aquela gente dava a entender que conhecia muito bem a tal nuvem-neblina, já que pareciam estar ali há décadas (eram bem velhinhos) e pelo fato de cada um afirmar qual era a direção correta e a apontar com mais propriedade e aparência de verdade do que os outros. Ironicamente, cada um apontava para um lado diferente, até porque cada um via o mapa de um ângulo diferente. E para piorar, como eu não me aproximei muito deles, não conseguia ouvir direito o que diziam, por isso não os entendia. Eu já começava a ficar nervosa, pois notei que, de tudo o que ouvia e captava, havia muito de complicado, contraditório, oposto e confuso nas tantas afirmações categóricas. Alguns falavam do mapa, outros da nuvem, mas eram unânimes em dizer que conheciam muito bem o autor e que tinham afinal compreendido qual era o caminho que ele indicava no seu mapa, mas que, para surpresa minha, tal autor não o havia desenhado! Intrigante. E eis que a pira começou a se instalar no meu serzinho. Em meio a tudo isso, notei um rapaz sentado numa pedra, com olhar pensativo, vestindo um uniforme escrito safe park. Ele se aproximou de mim e perguntou:
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O QUE O LINGUISTA FAZ?
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Antes de eu responder, surgiu na minha frente um homem com uma capa, cobrindo a cabeça com um capuz negro e opaco. Trazia um remo na mão direita e uma lamparina na mão esquerda. O barqueiro se chamava Valdir e, ao me encontrar, disse que eu havia entrado na nuvem sem ter lhe dado as duas moedas, e que por isso iria arrancar meus miolos e me levar às raias da loucura. Ai! Meu coração batia descompassado! Se ao menos eu acordasse...
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quarta-feira, 10 de março de 2010

Um pouco de botânica familiar...

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Castro é uma cidadezinha muito charmosa. Ao voltar das minhas férias passadas lá, olho para as fotos que tirei e penso nas várias qualidades desse lugar desconhecido por tantos: a arquitetura portuguesa no centro da cidade, as colônias de imigrantes europeus, os tantos museus e casas culturais, as quedas d'água e canyons, assim como a cidade quase sempre encoberta pela neblina, que são só uma amostra do lugar. O que mais interessa em Castro para mim, no entanto, são as raízes. As minhas raízes.
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Dez anos atrás fui embora de Castro deixando muito para trás. Deixei também algo que sempre me traria de volta, que me daria a sensação de pertencimento... as tais raízes, uma destinação natural. É incrível como o tempo e a distância não alteram esse sentimento de ninhada, de balaio-de-gato, e, quando revisito meu próprio interior, identifico que essas raízes espalham-se, espiralam-se e fixam-se em tudo o que sou. Morei em diversos lugares, convivi com muitas pessoas, mas meus sonhos à noite quase sempre são castrenses. É onde me sinto verdadeiramente em casa. Bem, tal sentimento é plenamente justificável: Castro é justamente onde nasci, onde vivi por 26 anos; é onde fica a casa da minha infância, onde vivem as pessoas que amo e que me amam de verdade. O caso é que não importa o quão longe eu esteja longe da minha sementeira, eu de fato nunca vou me esquecer do barulho dos pardais cantando às 6 da manhã na janela do meu quarto, do pão de alho da minha mãe, do olhar sorridente da minha avó, das velhas rusgas com meu irmão, das piadas do meu pai, da risada da minha sobrinha nem dos amigos que estão lá e que também tornaram meus dias em Castro mais felizes.
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No final das contas, são as raízes familiares que me mantêm em pé, são elas que me nutrem e que me dão segurança, e é por elas que volto às minhas origens sempre que posso. É como os castrenses dizem: "quem bebe água do Iapó, sempre volta". E eu acrescento: volta pra casa.
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